sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Asas Partidas...

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Fala Jorge,

Encontrei um texto teu de setembro de 2009 que me fez refletir um pouco sobre como nos últimos tempos raramente consigo me emocionar com alguma coisa que leio ou vejo na televisão. Os assassinatos de Mercia e Eliza e as balas perdidas que alcançam crianças inocentes já viraram parte da nossa rotina e criaram "defesas" . Esse teu texto foi provavelmente a útlima vez que essas "defesas" emocionais foram rompidas...Não vou te confessar que as da alma também...Nunca...

Forte abraço!

Marcos Ferreira



Por vezes escrevo textos longos à noite e não tenho coragem de postar pela manhã...

Ou reescrevo cortando onde poderia estar invadindo realidades alheias ou parecendo estar a vender imagem de 'bonzinho' que realmente não possuo, num discurso hipócrita...

Deixo de contar fatos até curiosos seguindo esta auto-censura...

Vou tentar novamente, agora à noite, a testar minha covardia da manhã...


...


Nesta semana apanhei uma senhora na frente da ABBR no Jardim Botânico...

Seu filho estava numa pequena cadeira de rodas para crianças...

Teve dificuldades de colocar a criança no banco de trás do carro...

Amarrei o resto da cadeira que não cabe inteira no porta malas...

Fomos conversando...

Ela é esposa de porteiro de um prédio em Laranjeiras...

O menino tem 9 anos e não enxerga...

Mas gosta de escutar TV e rádio...

Quase não fala...


Não anda...

Frequenta a escola da ABBR de segunda à sexta, entre meio dia e três horas da tarde...

Está evoluindo...

O menino veste uma calça estiloza com bolsos ao lado e tênis caprichados...

Sua camiseta da escola está impecavelmente limpa...

Apesar de todas dificuldades aparentes é tratado como se tivesse discernimento sobre auto-estima...

O menino não entende nada em sua volta, mas está cercado de esmero e carinho...

Um congestionamento monstruoso no Túnel Rebouças, após um carro enguiçar na primeira galeria, torna nossa viagem mais longa...

A mãe do menino fala sobre seus problemas como em desabafo sem demonstrar piedade...

Diariamente pega dois ônibus até o Jardim Botânico e depois na volta...

Difícil colocar o menino no ônibus e depois a cadeira...

Para desembarcar, igual...

Normalmente alguém aparece para ajudar...

Noutras, as pessoas se aborrecem por estarem tendo suas viagens atrapalhadas pela situação...

Um médico deu esperanças de cura...

Outro condenou-o por lançar falsas expectativas...

O atendimento da ABBR tem sido legal e vê evolução no sono do menino...

O menino tenta batucar no encosto de cabeça do banco à sua frente...

É repreendido...

Peço que o deixe ficar à vontade...

Ligo o rádio...

O menino fala:

- Nativa!

A mãe explica que ele adora a Rádio Nativa, forró, funk e/ou qualquer som...

Aproximo minha mão e ele segura meus dedos...

Toca uma música do Caetano...

Ele acalma...

Penso em me oferecer para transportá-los diariamente para desfrutar o conforto que nem me ligo o quanto pode ser importante para outros que não possuam...

Fico constrangido...

Para não parecer invasivo, imagino me oferecer fazer o percurso somente duas vezes na semana já que às quartas seu esposo está de folga e pode ajudar no percurso de ônibus...

Daí me surge a idéia que o tal marido porteiro poderia imaginar, ciumento, maldade da minha boa-fé...

Pois é...

O mundo atual está povoado por tantos pilantras que fica até difícil demonstrar solidariedade sincera...

A nova moral de nossa pátria amada Brasil nos delegou exemplos clássicos de cada um por si e Deus utilizado como argumento bíblico para tungar desavisados...

A corrida chega ao final...

A mãe pede ao menino que não chore...

Por quê?

Ele adora andar de carro com ar condionado gelado e som do rádio...

Ao retirar a cadeira de rodas da mala prendo meu dedo no exato local que já havia sangrado num corte - que disfarcei cobrindo com uma flanela quando acomodei a cadeira na mala - e volta a sangrar...

- O senhor está machucado?

- Não, é bobagem!

Me entrega vinte reais exatos que o taxímetro marcava 19,90...

Fico sem jeito de explicar que não quero cobrar nada...

Devolvo dez reais...

- É vinte, moço...

Daí não aceito mesmo...

- Está certo, por favor...

Ela fica sem entender nada...

Não queria nada...

Só queria falar, falar...

O menino salta sem chorar...

Passo a mão em sua cabeça descabelando, de sacanagem, seu topete em despedida...

O menino levanta a cabeça e ri de olhos cerrados já sentado na cadeira de rodas...

Sento ao volante...

Lembro da nova lógica filosofal individualista que estão nos incutindo deformando nossa formação...

Dou uma porrada no painel, nem sei por quê...

A ponta do meu dedo sangra o parabrisa e painel de vermelho...

Não vou lhes confessar que a alma também...

Nunca...




Jorge Schweitzer




3 comentários:

Mademoiselle disse...

Vc é lindo Jorge!!!
Humano em demasia.
Adoro vc!!

Mademoiselle.

Anonymous disse...

lembro desse texto...
muito bacana...

MD

analuiza disse...

Olá, um bom dia em nome do pai, o espelho das palavras nos mostra sempre . Abraços