Brizola confisca o estoque da Fábrica Taurus e distribui armamento para a população de Porto Alegre disposta a resistir a invasão do 1o. Exército que ameaça as fronteiras do Rio Grande do Sul...
Enquanto minha avó chora abraçada à minha mãe, tia Therezinha providencia água com açúcar...
Observo – com o coração aos pulos - todo orgulhoso em poder, até que enfim, não ter que engolir calado minhas primas se vangloriarem que seu pai esteve na Itália lutando na Segunda Guerra bravamente em defesa do Brasil sem compreender porque o meu também não estava lá...
Preferia até que ele tivesse sucumbido em batalha, sem perceber que em conseqüência em não nasceria dez anos depois...
Isso era detalhe desprezível...
Melhor do que ter que aturar o tio Jove me mostrando, orgulhoso e empávido, medalhas amareladas, cápsulas vazias, chamuscados de granada na perna e fotografias todo fardado garboso como a humilhar meu orgulho infantil ferido...
Atravesso a Rua Jardim, de chão batido, para descobrir se havia agitação igual na casa da tia Ilda...
Nada...
Realizado retorno para descobrir que minha tia Olinda, irmã de meu pai, havia se alistado como enfermeira com direito a braçadeira alvíssima bordada com cruz vermelha adornando sua bravura...
Não consigo entender a tristeza dos habitantes de minha casa; com exceção de meus dois heróis, era um chororô instalado incluindo meus três irmãos panacas...
Menos eu...
Eu estava realizado e feliz...
Pela rádio Farroupilha escutamos discursos com sotaque gaúcho da fronteira:
- Dos porões do Palácio Piratini para o Brasil!
Entremeados por canções militares...
Escuto minha avó falar que dias difíceis virão e que teremos que morar no porão da casa quando Porto Alegre for invadida e atacada por aviões da Aeronáutica...
Adorava o porão...
Palco das melhores e mais engraçadas brincadeiras...
Morar no porão com toda família reunida seria o mais completo sonho realizado de minha infância...
Meu pai contava, naquelas noites de luzes apagadas, que Brizola havia atravessado a praça invadindo a igreja para colocar uma metralhadora Ponto Cinquenta na torre da Igreja Matriz em frente ao Palácio – tal qual em filmes mexicanos – embora o Arcebispo Dom Vicente Scherer resistisse apoiando os militares...
Infelizmente não houve invasão...
Não fomos morar no porão...
Eu queria guerra...
Queria ver minha casa bombardeada para eu pular, como um Capitão Marvel, para o meio do pátio munido de estilingue e bilha - que havia soltado da rolimã de meu carrinho de lomba - esguelando um palavrão que me estremecesse o peito e acertar o olho de um piloto japonês após arrebentar sua viseira idiota...
João Goulart assumiu...
O tempo passou rápido...
Dom Vicente Scherer me crismou...
Na cerimônia quando tentou sacramentar minha cabeça esquivei-me, ainda ressentido...
No almoço, logo depois da crisma, ele acendeu um cigarro...
Nunca tinha visto padre fumando...
Para mim ele não era padre nada, e além de tudo responsável por minha família não ter ido para o porão comigo; era um padre falsificado...
Veio a ditadura; Brizola era nome proibido de ser pronunciado...
Minha avó Pequena, vez por outra, nos chamava num canto e sacava de sua carteira santinho de campanha de um homem de bigode fino – ao lado do falecido avô Aprígio - e nos mostrava, para manter a chama acesa, que aquele homem inundou os pampas de escolas com o projeto João-de-Barro e tornou o Rio Grande zero por cento em analfabetismo...
Ele queria o Poder e também eleitores esclarecidos e contestadores...
Décadas depois, num entardecer de uma sexta-feira, na sede do PDT da Sete de Setembro, no Rio de Janeiro, de escadas de madeira, no fundo de uma sala empoeirada cheia de carteiras escolares, sozinho nós dois, narrei para o Caudilho que apertava minha mão esta aventura infantil imaginando provocar boas gargalhadas...
Presenciei olhos marejados abaixo das grossas sobrancelhas...
Jorge Schweitzer
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